Eram pouco mais que quatro da tarde, o sol já começava a se alaranjar e o vento frio cortava a cidade de concreto. Da soleira de um prédio comercial um homem repousava olhando o movimento a muitos metros abaixo de seus pés, porém seus pensamentos foram embora quando uma voz sibilou atrás de si.
- O que faz aí? - disse um jovem de cabelos compridos, lisos e volumosos, usava uma camisa e calça jeans e um coturno preto, seu moletom estava amarrado na cintura, o frio ainda não parecia afetá-lo.
- Estou admirando a paisagem - respondeu um homem negro, careca, forte bem agasalhado - a vista é bonita.
- Tem lugares melhores para se apreciar uma vista, tem certeza de que não vai pular daí? - um sorriso surgiu no rosto do homem negro mostrando lindos dentes brancos.
- Pode ser... Tudo vai depender...
O garoto logo apalpou seus bolsos a procura de um celular, tinha que avisar a alguém do suicida que se encontrava na sua frente
- Quer um conselho? Não pule! - disse enquanto se apalpava em busca do telefone. O homem riu.
- Vem cá, esquece o celular, quando os bombeiros chegarem com aquela ladainha aí sim eu vou querer me jogar daqui.
Sem hesitar, o garoto pulou a janela e se sentou do lado do suicida.
- Foi mais fácil do que imaginei te convencer vir pra cá.
- Você é um suicida, não vou te contrariar. E você tinha razão a vista é bonita aqui.
- Sim... as pessoas daqui são pequenas, pequenas partes de uma máquina, são como células, cada uma fazendo seu serviço. Estava pensando nisso quando me interrompeu, como todos nós somos uma ferramenta de algo maior, mas se pensarmos de modo macro, pra que trabalhamos?
- Pelo mundo?
- Qual o significado de trabalharmos pelo mundo? Não há... Pelo menos nada que conhecemos.
- E você vai se jogar daqui por que não entende o sentido da vida?
Novamente o suicida riu e ficou em silencio olhando para o céu que aos poucos ia escurecendo.
- Vem vamos entrar - o garoto interrompeu novamente os devaneios do homem - Já chamou atenção, o público já está se formando lá em baixo, e logo eles chamam os bombeiros.
- Não... temos tempo ainda - a voz do suicida era grossa e imponente, ao olhar para baixo viu apenas duas pessoas olhando pra cima, assistindo os dois no parapeito do prédio - O que você pensa das pessoas que nos assistem?
O garoto encarou com curiosidade o suicida, pois não esperava essa reação do homem.
- Eu... Eu acho que as pessoas tem prazer em ver o mau, no fundo todo mundo adora uma carnificina. Aposto que os que nos assistem lá debaixo desejam que pulemos e por isso estão olhando pra cá, não querem perder o momento.
- Uou, uou... Você tem certeza que eu sou o suicida depressivo aqui? - o sorriso sempre estava presente no rosto do homem que queria acabar com a sua vida - Vamos fazer uma coisa então, quero que você me de motivos para pular, e eu tento rebater seus motivos.
- Aí se você pular eu serei o motivo e serei preso.
- Ninguém precisa saber, ninguém está ouvindo...
- E a minha consciência? - replicou o garoto indignado.
- Você acabou de dizer que que no fundo todo mundo adora uma carnificina, não seja hipócrita então.
- Todo mundo adora a carnificina quando não é ela a causadora.
- Mas você não irá causa, eu vou pular, de certa forma você está tentando me impedir...
Alguns minutos em silencio se seguiram e mais pessoas se juntavam lá embaixo para assistir.
- Ok! - disse finalmente o garoto - Então admita: as pessoas lá embaixo são apenas plateia da morte, o que elas desejam é que até o final desse dia haja pelo menos um corpo beijando o asfalto lá embaixo.
- Não, eu acredito que eles estejam preocupados com a vida do próximo. Sabe, eu acho que o que se passa pelas cabeças deles são coisas distintas como 'o que faz uma pessoa chegar a esse ponto?', 'Tão jovem, por que está desperdiçando a vida?', 'Isso é falta de deus no coração'. Bom, no fundo cada um deles está preocupado, se pondo em nosso lugar e pensando 'E se fosse eu ali? Que tipo de apoio eu teria?'. Há a preocupação deles em relação ao desconhecido, porém acredito que eles queiram que sejamos salvos.
As palavras do suicida faziam sentido, o garoto olhou novamente para baixo e viu de forma diferente os curiosos que fitavam o céu. Mas ainda não estava totalmente convencido.
- As pessoas são essencialmente ruins e cruéis, elas precisam de um foco, de um líder. Digamos que de repente todos fiquem livres, não precisam mais responder a ninguém, todos fazem o que querem, as pessoas iram se matar, a degradação humana exterminará a vida em pouco tempo.
- Será? As pessoas são essencialmente boas, o que as torna ruins são as condições de que vivem, nem todas conseguem uma oportunidade, esse lideres que você diz que coloca ordem são, ao meu ver, os responsáveis pelas diferenças. Tirar tudo isso de uma vez pode causar certo incomodo, as coisas precisam ser graduais. O ser humano não é ruim, só incompreendido.
Dessa vez foi o garoto que sorriu.
- É, pode ser mesmo - e ficou refletindo olhando para o céu - E o amor?
- O que tem o amor?
- Pra mim, ele é ruim. E é o motivo de morte para muita gente. As vezes damos tudo de si por uma pessoa, passamos por cima dos nossos preconceitos em nome do amor, mas nunca somos retribuídos, o amor é uma fria.
O suicida encarou o novamente o garoto, sorrindo, parecia que queria mesmo que esse assunto fosse tocado, e era disso mesmo que ele queria falar.
- Ah, o amor... O amor é uma joia rara e que existe de vária formas. Você ama seus pais, seus avós seus amigos, há diferentes tipos de amores. Porém, o amor do qual você se refere é o amor do relacionamento, de se envolver com outra pessoa, esse amor precisa ser lapidado para que as duas partes sintam a mesma coisa. Aliás, não só este amor, mas todos eles, o amor é muito mais bonito quando é reciproco, você dá e recebe o mesmo tanto - o suicida respirou fundo e ficou olhando para cima pensado, as luzes da cidade começavam a se acender abaixo dos dois - O amor é puro e apesar da devastação que ele pode causar quando não é recíproco, não há motivos pra se desistir dele. Amores vem e vão, todo o tempo.
- Obrigado - disse baixo o garoto, com uma voz fraca.
- De nada, estou aqui para isso - o suicida olhou para o garoto que fitava as pessoas lá embaixo, com os olhos cheio d'água - Não precisa acabar com tudo isso, você é jovem e o amor ainda vai te alcançar - o garoto virou para o homem ao seu lado e sorriu.
- Hey garoto, saia daí - Uma voz veio da janela atrás dos dois, o garoto se virou para olhar - vem devagar para a janela, eu te seguro, vem.
- Mas, e... - o garoto se virou aonde estava o suicida, e não havia mais ninguém ali, olhou para baixo e ele não havia pulado, de repente se viu ali no parapeito sozinho - Tinha mais alguém aqui fora comigo? - perguntou o garoto para o homem na janela que esticava o braço apara ajudá-lo a entrar.
- Não - respondeu o homem confuso.
O garoto voltou para dentro, o homem que o ajudou o levou para dentro, várias pessoas perguntavam se ele estava bem e se precisava de alguma coisa, o garoto não parava de olhar pela janela, não compreendia o que estava acontecendo, até que uma mão tocou a sua e colocou um copo d'água em suas mãos.
- Beba isso, você vai se sentir melhor - disse uma senhora de cabelos brancos, garoto tomou um pequeno gole d'água - coloque seu agasalho está frio.
- Tinha alguém lá comigo - sussurrou o garoto.
A velha ouviu e sorriu. O garoto fitou a senhora que replicou:
- As vezes os anjos descem do céu só para nos ajudar.